domingo, 27 de setembro de 2015

HAROLD AND MAUDE (1971) - RECOMENDO

Chegamos ao fim de Setembro. Setembro Amarelo foi o mês representativo de prevenção ao Suicídio. Por isso resolvi ver filmes sobre o tema e acabei me deparando com uma belíssima película.
Harold and Maude (1971) fala basicamente sobre polaridade ou contraste. Vida - Morte, Burguesia - Anarquia, Dependencia - Liberdade, Saúde - Doença, Tristeza - Felicidade. Trata-se de um filme bastante inusitado, que apresenta a relação de um jovem na base dos 20 anos e uma senhora de 79 anos.
Na época que foi lançado foi considerado um fracasso de público. A trilha sonora faz com que o filme tenha uma nota de inspiração. É composta por músicas escritas e cantadas por Cat Stevens, algumas especialmente para o filme.
Harold encena tentativas de suicídio, aparentemente com a ideia de chamar a atenção da mãe, que o ignora na grande maioria das vezes. Tudo é programado pela mãe: ela quer casar o filho, compra coisas sem o seu consentimento, o encaminha para sessões de psicoterapia. Harold gosta de participar de funerais, além de admirar e comprar carros funerários.
Maude também vai a funerais, fato que faz com que eles se encontrem e comecem a ter uma relação mais próxima. Maude do contrário, vê a morte como algo natural de quem tenta ao máximo gozar da vida. Ela respira liberdade e não se preocupa com convenções.
O encontro de Harold and Maude é o grande lance do filme. É um daqueles filmes para se ver mais de uma vez, rir e absorver encantadoras paisagens. Existencialista e atual. Sem mais, contendo-se dos spoilers.



sexta-feira, 29 de maio de 2015

A SOLIDÃO AMIGA

A noite chegou, o trabalho acabou, é hora de voltar para casa. Lar, doce lar? Mas a casa está escura, a televisão apagada e tudo é silêncio. Ninguém para abrir a porta, ninguém à espera. Você está só. Vem a tristeza da solidão… O que mais você deseja é não estar em solidão…
Mas deixa que eu lhe diga: sua tristeza não vem da solidão. Vem das fantasias que surgem na solidão. Lembro-me de um jovem que amava a solidão: ficar sozinho, ler, ouvir, música… Assim, aos sábados, ele se preparava para uma noite de solidão feliz. Mas bastava que ele se assentasse para que as fantasias surgissem. Cenas. De um lado, amigos em festas felizes, em meio ao falatório, os risos, a cervejinha. Aí a cena se alterava: ele, sozinho naquela sala. Com certeza ninguém estava se lembrando dele. Naquela festa feliz, quem se lembraria dele? E aí a tristeza entrava e ele não mais podia curtir a sua amiga solidão. O remédio era sair, encontrar-se com a turma para encontrar a alegria da festa. Vestia-se, saía, ia para a festa… Mas na festa ele percebia que festas reais não são iguais às festas imaginadas. Era um desencontro, uma impossibilidade de compartilhar as coisas da sua solidão… A noite estava perdida.
Faço-lhe uma sugestão: leia o livro A chama de uma vela, de Bachelard. É um dos livros mais solitários e mais bonitos que jamais li. A chama de uma vela, por oposição às luzes das lâmpadas elétricas, é sempre solitária. A chama de uma vela cria, ao seu redor, um círculo de claridade mansa que se perde nas sombras. Bachelard medita diante da chama solitária de uma vela. Ao seu redor, as sombras e o silêncio. Nenhum falatório bobo ou riso fácil para perturbar a verdade da sua alma. Lendo o livro solitário de Bachelard eu encontrei comunhão. Sempre encontro comunhão quando o leio. As grandes comunhões não acontecem em meio aos risos da festa. Elas acontecem, paradoxalmente, na ausência do outro. Quem ama sabe disso. É precisamente na ausência que a proximidade é maior. Bachelard, ausente: eu o abracei agradecido por ele assim me entender tão bem. Como ele observa, “parece que há em nós cantos sombrios que toleram apenas uma luz bruxoleante. Um coração sensível gosta de valores frágeis“. A vela solitária de Bachelard iluminou meus cantos sombrios, fez-me ver os objetos que se escondem quando há mais gente na cena. E ele faz uma pergunta que julgo fundamental e que proponho a você, como motivo de meditação: “Como se comporta a Sua Solidão?“ Minha solidão? Há uma solidão que é minha, diferente das solidões dos outros? A solidão se comporta? Se a minha solidão se comporta, ela não é apenas uma realidade bruta e morta. Ela tem vida.
Entre as muitas coisas profundas que Sartre disse, essa é a que mais amo: “Não importa o que fizeram com você. O que importa é o que você faz com aquilo que fizeram com você.“ Pare. Leia de novo. E pense. Você lamenta essa maldade que a vida está fazendo com você, a solidão. Se Sartre está certo, essa maldade pode ser o lugar onde você vai plantar o seu jardim.
Como é que a sua solidão se comporta? Ou, talvez, dando um giro na pergunta: Como você se comporta com a sua solidão? O que é que você está fazendo com a sua solidão? Quando você a lamenta, você está dizendo que gostaria de se livrar dela, que ela é um sofrimento, uma doença, uma inimiga… Aprenda isso: as coisas são os nomes que lhe damos. Se chamo minha solidão de inimiga, ela será minha inimiga. Mas será possível chamá-la de amiga? Drummond acha que sim:
“Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.!“
Nietzsche também tinha a solidão como sua companheira. Sozinho, doente, tinha enxaquecas terríveis que duravam três dias e o deixavam cego. Ele tirava suas alegrias de longas caminhadas pelas montanhas, da música e de uns poucos livros que ele amava. Eis aí três companheiras maravilhosas! Vejo, frequentemente, pessoas que caminham por razões da saúde. Incapazes de caminhar sozinhas, vão aos pares, aos bandos. E vão falando, falando, sem ver o mundo maravilhoso que as cerca. Falam porque não suportariam caminhar sozinhas. E, por isso mesmo, perdem a maior alegria das caminhadas, que é a alegria de estar em comunhão com a natureza. Elas não vêem as árvores, nem as flores, nem as nuvens e nem sentem o vento. Que troca infeliz! Trocam as vozes do silêncio pelo falatório vulgar. Se estivessem a sós com a natureza, em silêncio, sua solidão tornaria possível que elas ouvissem o que a natureza tem a dizer. O estar juntos não quer dizer comunhão. O estar juntos, frequentemente, é uma forma terrível de solidão, um artifício para evitar o contato conosco mesmos. Sartre chegou ao ponto de dizer que “o inferno é o outro.“ Sobre isso, quem sabe, conversaremos outro dia… Mas, voltando a Nietzsche, eis o que ele escreveu sobre a sua solidão:
“Ó solidão! Solidão, meu lar!… Tua voz – ela me fala com ternura e felicidade! Não discutimos, não queixamos e muitas vezes caminhamos juntos através de portas abertas. Pois onde quer que estás, ali as coisas são abertas e luminosas. E até mesmo as horas caminham com pés saltitantes.
Ali as palavras e os tempos
poemas de todo o ser se abrem diante de mim. Ali todo ser deseja transformar-se em palavra, e toda mudança pede para aprender de mim a falar.“
E o Vinícius? Você se lembra do seu poema O operário em construção? Vivia o operário em meio a muita gente, trabalhando, falando. E enquanto ele trabalhava e falava ele nada via, nada compreendia. Mas aconteceu que, “certo dia, à mesa, ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção ao constatar assombrado que tudo naquela casa – garrafa, prato, facão – era ele que os fazia, ele, um humilde operário, um operário em construção (…) Ah! Homens de pensamento, não sabereis nunca o quando aquele humilde operário soube naquele momento! Naquela casa vazia que ele mesmo levantara, um mundo novo nascia de que nem sequer suspeitava. O operário emocionado olhou sua própria mão, sua rude mão de operário, e olhando bem para ela teve um segundo a impressão de que não havia no mundo coisa que fosse mais bela. Foi dentro da compreensão desse instante solitário que, tal sua construção, cresceu também o operário. (…) E o operário adquiriu uma nova dimensão: a dimensão da poesia.“
Rainer Maria Rilke, um dos poetas mais solitários e densos que conheço, disse o seguinte: “As obras de arte são de uma solidão infinita.“ É na solidão que elas são geradas. Foi na casa vazia, num momento solitário, que o operário viu o mundo pela primeira vez e se transformou em poeta.
E me lembro também de Cecília Meireles, tão lindamente descrita por Drummond:
“…Não me parecia criatura inquestionavelmente real; e por mais que aferisse os traços positivos de sua presença entre nós, marcada por gestos de cortesia e sociabilidade, restava-me a impressão de que ela não estava onde nós a víamos… Distância, exílio e viagem transpareciam no seu sorriso benevolente? Por onde erraria a verdadeira Cecília…“
Sim, lá estava ela delicadamente entre os outros, participando de um jogo de relações gregárias que a delicadeza a obrigava a jogar. Mas a verdadeira Cecília estava longe, muito longe, num lugar onde ela estava irremediavelmente sozinha.
O primeiro filósofo que li, o dinamarquês Soeren Kiekeggard, um solitário que me faz companhia até hoje, observou que o início da infelicidade humana se encontra na comparação. Experimentei isso em minha própria carne. Foi quando eu, menino caipira de uma cidadezinha do interior de Minas, me mudei para o Rio de Janeiro, que conheci a infelicidade. Comparei-me com eles: cariocas, espertos, bem falantes, ricos. Eu diferente, sotaque ridículo, gaguejando de vergonha, pobre: entre eles eu não passava de um patinho feio que os outros se compraziam em bicar. Nunca fui convidado a ir à casa de qualquer um deles. Nunca convidei nenhum deles a ir à minha casa. Eu não me atreveria. Conheci, então, a solidão. A solidão de ser diferente. E sofri muito. E nem sequer me atrevi a compartilhar com meus pais esse meu sofrimento. Seria inútil. Eles não compreenderiam. E mesmo que compreendessem, eles nada podiam fazer. Assim, tive de sofrer a minha solidão duas vezes sozinho. Mas foi nela que se formou aquele que sou hoje. As caminhadas pelo deserto me fizeram forte. Aprendi a cuidar de mim mesmo. E aprendi a buscar as coisas que, para mim, solitário, faziam sentido. Como, por exemplo, a música clássica, a beleza que torna alegre a minha solidão…
A sua infelicidade com a solidão: não se deriva ela, em parte, das comparações? Você compara a cena de você, só, na casa vazia, com a cena (fantasiada ) dos outros, em celebrações cheias de risos… Essa comparação é destrutiva porque nasce da inveja. Sofra a dor real da solidão porque a solidão dói. Dói uma dor da qual pode nascer a beleza. Mas não sofra a dor da comparação. Ela não é verdadeira.

Rubem Alves
(Correio Popular, 30/06/2002)




domingo, 24 de maio de 2015

CHOVE. HÁ SILÊNCIO

Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva
Não faz ruído senão com sossego.
Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva
Do que não sabe, o sentimento é cego.
Chove. Meu ser (quem sou) renego...

Tão calma é a chuva que se solta no ar
(Nem parece de nuvens) que parece
Que não é chuva, mas um sussurrar
Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.
Chove. Nada apetece...

Não paira vento, não há céu que eu sinta.
Chove longínqua e indistintamente,
Como uma coisa certa que nos minta,
Como um grande desejo que nos mente.
Chove. Nada em mim sente...

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

quarta-feira, 20 de maio de 2015

UM CAFE COM YOUNG THE GIANT



- Aceita um café? Perguntou após sentar-se ao meu lado.
- Sim, por favor. Com muito açúcar.
"de amarga já basta a vida", pensei.


sexta-feira, 1 de maio de 2015

FRUSCIANTE








Temos sorte de que a vida não é como os sonhos, nos quais o resultado das nossas ações é perdido com o próximo sonho. Aqui temos a possibilidade de construir algo dia após dias, seja uma habilidade em algo ou um edifício de verdade. Seja no mundo ou nas nossas mentes, o princípio se mantém. Lemos uma página de um livro, e lendo a página seguinte os eventos se seguem aos anteriores. Na música, uma nota conduz à próxima, a nova em relação àquelas que a precederam. Ou aprendemos o básico de algo e depois gradualmente as complexidades daquele assunto. Esses presentes são nossos para que façamos com eles o que bem entendermos.

Suas emoções estão totalmente amarradas em seus pensamentos e você não teve nenhuma habilidade para poder separá-los. Então você lê isso uns dias depois quando você está com um humor diferente, e olhando para isso dessa posição exterior, você pode mentalmente, colocar esse lugar num modo claro. Assistir aquilo pelo cérebro, mas com um contexto sentimental completamente diferente, você pode estabelecer um pequeno tipo de separação entre seus pensamentos e suas emoções: Se você não escreve e nunca olha pra dentro de você de uma forma exterior, você é incapaz de fazer.

Eu não posso imaginar isso (escrever), não servindo pra ninguém. Eu costumava ser supersticioso sobre escrever meus pensamentos, eu só escrevia poesia. Quando eu comecei a escrever pensamentos ordinários, eu não poderia imaginar a diferença que iria fazer. As vezes você podia escrever a mesma coisa o dia todo: "Sou tão triste, sou tão miserável..." Eu escrevi aquelas mesmas entradas em meu caderno tantas vezes essas mesmas palavras. Existe um sentimento de fuga. Existem horas de só em você escrever, isso te propicia uma nova perspectiva. As vezes não é nem lendo isso de volta; Como você está escrevendo, o trem de pensamentos está mais moderado. Quando você estiver pensando coisas, seus pensamentos tem a habilidade de ir nesse passo incrivelmente rápido, muito mais rápido que nossa fala ou nossa escrita, então o processo da escrita é um processo para diminuir a velocidade do fluxo de pensamento para onde você está pensando em um modo mais lento. Você tem conclusões pensando devagar, que você nunca teria pensando rápido.

Eu estava preocupado tanto com o som das palavras, como com as palavras em si, porque quando você canta algo com convicção, isso transmite um significado emocional além do sentido literal que as palavras podem ter. Mas, neste caso, havia algo muito específico que eu queria expressar liricamente, e fiz revisão após revisão, a modo que cada linha significasse algo. Foi um novo desafio. O que as palavras significarão para outras pessoas vai depender de onde elas estão em suas vidas e quais são seus interesses, embora o significado possa também ser transmitido diretamente a seus inconscientes, não importando se as pessoas conscientemente entendam as palavras ou não.

A diferença essencial é que antes eu imaginava muitas coisas que estavam acontecendo na minha cabeça e eu estava tentando transformá-las em som e eu não sabia como. Convertendo os ritmos e frequências em uma parte da minha música... era impossível para mim. Naquela época eu só podia tocar violão e cantar, agora eu acho que depois de ter ouvido algumas músicas eletrônicas, eu fui capaz de fazer a minha música rica em texturas e sons completos.

A imaginação é o mundo mais real que conhecemos, porque cada um de nós a conhece por experiência própria.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

UM ARTISTA DA FOME

A uns 3 anos eu li o conto "Um artista da fome" e me surpreendi sobre a sua simplicidade e profundidade. "Um Artista da Fome" (cujo título original em alemão é Ein Hungerkünstler) é um conto de Franz Kafka publicado no Die Neue Rundschau em 1924.


Um Artista da Fome narra a trajetória de um artista jejuador, num espaço e tempo qualquer. Ele terá que bater sempre o próprio recorde de dias sem comer para poder continuar sendo uma grande atração de interesse do público. Tal situação nos remete a um paradoxo, ou seja, à situação de um homem que precisa passar fome para sobreviver.


O faquir, é um asceta que executa feitos de resistência ou de suposta magia, como caminhar sobre fogo ou deitar-se sobre pregos, em uma época que era bastante compensador organizar por conta própria grandes apresentações desse tipo.
O Faquir mencionado no texto possuía a habilidade de jejuar por diversos dias e noites sem cessar, exibindo-se aos espectadores em uma espécie de jaula, bebericando água raramente para umedecer os lábios em um pequeno copo ali disponível.
Nos dias de tempo bom a jaula era levada para o ar livre, sendo o jejuador exibido especialmente para crianças que olhavam com medo e espantadas, entretanto para os adultos ele frequentemente era apenas uma diversão. Os olhos dos presentes ficavam fixados na imagem do homem de aparência debilitada, apesar da excessiva magreza, palidez e costelas marcadas, algumas pessoas ainda duvidavam da veracidade dos fatos, havia aquelas também que pensavam que sua magreza era consequência da insatisfação consigo mesmo.  Porém se realmente havia sido jejuado ininterrompidamente sem falha alguma, só o próprio jejuador podia saber.
Como tudo passa e por ventura cai no esquecimento o jejuador foi perdendo visibilidade para outros acontecimentos mais interessantes como, por exemplo, o circo e cada vez mais sua arte foi sendo ignorada, afinal as pessoas se acostumavam à estranheza de se querer nos tempos atuais, chamar a atenção para o artista da fome e com isso já estava lavrada a sentença contra ele. O autor chega ao ponto chave do texto quando questiona: Tente explicar a alguém a arte da fome! Para quem não sente isso, não se pode explicar.
Enfim, o Faquir morri envolvido em sua arte, afirmando sua vontade de reconhecimento e justificando sua atitude dentro do contexto. Segundo ele jejuava por não achar comida que o agradasse.
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Existem momentos da sua vida que as pessoas ao seu redor - ou aquelas que se distanciaram fisicamente- não conseguem notar o que te apetece. Nem sequer conseguem refletir o que você deseja para o seu futuro. Você acaba virando o produto das expectativas de amigos e família. 

E você ai, sabe o que te agrada? Sabe o quer para sua vida? Tem um projeto em andamento? Abriria mão de seus desejos para "agradar" aos Outros?

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Trechos do conto em vídeo e ilustrações:



terça-feira, 29 de janeiro de 2013

O PROBLEMA DA SINCERIDADE




   O poeta superior diz o que efectivamente sente. O poeta médio diz o que decide sentir. O poeta inferior diz o que julga que deve sentir. Nada disto tem que ver com a sinceridade. Em primeiro lugar, ninguém sabe o que verdadeiramente sente: é possível sentirmos alívio com a morte de alguém querido, e julgar que estamos sentindo pena, porque é isso que se deve sentir nessas ocasiões. A maioria da gente sente convencionalmente, embora com a maior sinceridade humana; o que não sente é com qualquer espécie ou grau de sinceridade intelectual, e essa é que importa no poeta. Tanto assim é que não creio que haja, em toda a já longa história da Poesia, mais que uns quatro ou cinco poetas, que dissessem o que verdadeiramente, e não só efectivamente, sentiam. Há alguns, muito grandes, que nunca o disseram, que foram sempre incapazes de o dizer. Quando muito há, em certos poetas, momentos em que dizem o que sentem.
    Aqui e ali o disse Wordsworth. Uma ou duas vezes o disse Coleridge; pois a Rima do Velho Nauta e Kubla Khan são mais sinceros que todo o Milton, direi mesmo que todo o Shakespeare. Há apenas uma reserva com respeito a Shakespeare: é que Shakespeare era essencial e estruturalmente factício; e por isso a sua constante insinceridade chega a ser uma constante sinceridade, de onde a sua grandeza. 
    Quando um poeta inferior sente, sente sempre por caderno de encargos. Pode ser sincero na emoção: que importa, se o não é na poesia? Há poetas que atiram com o que sentem para o verso; nunca verificaram que o não sentiram. Chora Camões a perda da alma sua gentil; e afinal quem chora é Petrarca. Se Camões tivesse tido a emoção sinceramente sua, teria encontrado uma forma nova, palavras novas — tudo menos o soneto e o verso de dez sílabas. Mas não: usou o soneto em decassílabos como usaria luto na vida. 
     O meu mestre Caeiro foi o único poeta inteiramente sincero do mundo.


Fernando Pessoa, in 'Ideias Estéticas - Da Literatura'